Nosso Século XXI (2ª Ed.)

O futuro aos pequenos
empreendimentos pertence

GILBERTO WACHTLER - 16/09/2008


Para quem se preocupa com o futuro mediato e imediato da economia e da qualidade de vida das populações urbanas, basta um olhar responsável para projetar o varejo como órgão vital de uma cidade funcional, ativa e saudável. Posso até assegurar que apenas municípios que entenderem o varejo — e derem a importância que o setor merece — estarão escrevendo as páginas de um futuro próspero neste século XXI.


Vendo a cidade como um organismo vivo, o setor varejista pode ser considerado o fígado da economia, capaz de absorver e purificar muitos impactos socioeconômicos. Já em 1990 havia a sensação de que era tarde demais para que fosse criada proposta coerente e harmonizadora capaz de cadenciar as infindáveis implantações megavarejistas no Grande ABC. Agora em 2008, as invasões continuam e a sensação é de que, de fato, talvez seja tarde demais para evitar a morte de pequenos e médios comerciantes que sobraram na região, assim como das inúmeras pequenas e médias empresas interdependentes.


O que fazer para que tenhamos um Grande ABC como organismo livre de divisas geográficas, capaz de germinar sementes futuras de equilíbrio econômico e social, aceitando a regionalização como prioridade? Continuaremos com a leitura do “agora é tarde”, esquecendo da inércia do passado e suas consequências? Claro que não. Tornou-se inevitável que qualquer atitude de prevenção futurista se inicie lançando um olhar atento aos atos e omissões que impediram que resolvêssemos nossos problemas passados, analisando como se mostram hoje e quais as tendências para formar o amanhã.


Em 2028 teremos 4,5 milhões de habitantes no Grande ABC. Será que continuaremos afirmando “agora é tarde para planejar?”


O Grande ABC não foi capaz de se unir na realização de um estudo sequer sobre o impacto socioeconômico gerado no pós-desindustrialização. Também não fomos hábeis, quando começou a avalanche megavarejista que sofremos, de prever o desastre do comércio tradicional de rua. Na verdade, fomos incompetentes para apontar caminhos ou para desenvolver vacina contra qualquer uma das muitas enfermidades que atacaram o varejo do Grande ABC com a reviravolta industrial que lançou milhares de desempregados portão de fábrica afora, rumo à aventura de serem donos dos próprios negócios.


Nunca pequenos e médios empreendedores do varejo tiveram tantos deveres e tão poucos direitos como nos últimos 15 anos, primeiro enfrentando desindustrialização regional que comprometia as vendas, depois a onda invasora de gigantes varejistas com capital estrangeiro de sobra para promover a discórdia econômica na região, facilitados pelo entusiástico consentimento, bônus e recepção calorosa dos poderes públicos do Grande ABC.


A devassa promovida por esses predadores varejistas, insaciáveis, cometendo ações muito semelhantes em todas as regiões metropolitanas, movidas por uma ganância sem escrúpulos, escolheu o Grande ABC para provocar os efeitos mais funestos. Afinal, foi aqui que se experimentou com mais intensidade o sabor amargo da soma entre evasão qualitativa e invasão desordenada e desqualificada. Isso tudo unido a perdas irreparáveis no número de postos de trabalho e a demonstrações claras de total falta de regionalismo entre os sete municípios.


Infelizmente, é um estado de coisas em que apenas um fato é certo: enquanto o orgulho, o ego, o individualismo e a falta de comprometimento com o Grande ABC prevalecerem, estaremos perdendo a oportunidade de fazer diferente e evitar fenômeno parecido com a crise fabril já vivenciada, nosso holocausto econômico. É necessário entender que o processo de expansão das grandes corporações varejistas está na contramão do processo de projeções industriais não predatórias, centradas no cuidado de criar em seu entorno pequenas empresas alimentadoras e servidoras de suas plantas produtivas.


O megavarejo não age somente de forma diretamente negativa sobre pequenas empresas que são competidoras imediatas de sua atividade principal. Seu impacto, mostram as evidências, é extremamente perverso e destrutivo para quase todas as atividades, atingindo até empresas de serviços e pequenas indústrias locais. Estamos falando das indústrias caseiras, familiares e de pequeno porte que jamais desovaram produtos no chão de loja de um hipermercado, cujas políticas comerciais anti-sociais e pouco éticas esgotam qualquer possibilidade de preservação de pequenos fabricantes.


O desemprego provocado custa três vezes o número de empregos gerados por um empreendimento varejista de grande porte na área em que atua. Num primeiro momento, os efeitos são diretamente sobre as dezenas de atividades comerciais que disputam os mesmos produtos em seus pontos-de-venda e, num segundo momento, sobre fornecedores dessas pequenas empresas varejistas.


É a pequena empresa que melhor
absorve produtos locais, bem como
os serviços e 70% da mão-de-obra


Com atuação simplificada, são os pequenos varejistas que melhor absorvem produtos locais, assim como os serviços e a mão-de-obra da região, além de produtos industrializados por pequenas empresas. Nada, enfim, que possa ser equiparado com o modo de operação dos gigantes varejistas. Assim, resultados negativos surgem rápida e intensamente no campo social. Resta aos municípios colherem as receitas geradas por esses empreendimentos enormes e, ao mesmo tempo, admitir que ficaram com o grande desfalque do enfraquecimento comunitário, queda de receita e fechamento de empreendimentos de menor porte.


Sete em cada 10 empregos gerados no Grande ABC são de pequenas e médias empresas com até 50 funcionários. Essa é a realidade. Portanto, já passou a hora de valorizar o que tem valor efetivamente e não se deixar iludir pela ótica simplista que gigantes empreendedores varejistas oferecem como maravilha econômica. Infelizmente, bater nesta tecla, quando o assunto é Grande ABC, ainda não abre nenhuma perspectiva promissora de mudança.


O modo como são tratados os pequenos e médios negócios é, antes de tudo, a marca arrogante de um passado de prosperidade fabril que foi muito mal aproveitado. Em muitos países, alguns até sedes desses que aqui dominam o ranking de vendas, não se permite expansão desordenada igual ou semelhante ao que aqui ocorre. Lá se sabe muito bem que isso despertaria descontrole de difícil reversão econômico-social. Londrina sinalizou nesse sentido proibindo a instalação de um gigante varejista em seu território, exemplo que deveria ser seguido por todos os municípios brasileiros.


A cidade de Inglewood, na Califórnia, é referência mundial de
resistências ao Wal-Mart. Lei aprovada pelos vereadores vetou a
instalação de lojas com mais de 14 mil metros quadrados na cidade. Em seguida, um plebiscito popular confirmou a proibição de instalação da rede em Inglewood.


Embora o prefeito apoiasse o Wal-Mart, a campanha vitoriosa contrária à instalação foi coordenada por líderes religiosos e comunitários, além dos sindicatos. Eles contribuíram com US$ 1 milhão para campanha contra o Wal-Mart, que por sinal introduziu novo verbete no dicionário da economia mundial: trata-se da walmartização, utilizado para descrever o processo de empobrecimento do mundo.


Maior rede varejista do mundo, o Wal-Mart transformou-se em sinônimo de expansão da pobreza. O The New York Times, um dos mais importantes jornais americanos, ressaltou em editorial de 15 de novembro de 2003 que “a walmartização da força de trabalho (…) ameaça empurrar milhares de americanos para a pobreza”. Negociações impraticáveis com fornecedores, baixos salários pagos aos funcionários, desaparecimento de benefícios, seguros de saúde inacessíveis, ações na justiça por discriminação sexual, sonegação fiscal, trabalho clandestino e práticas anti-sindicais, além de denúncias de assédio sexual, desrespeito às convenções coletivas e às leis trabalhistas pipocam em jornais de todos os países onde a rede fincou o pé e denigrem o Wal-Mart como um dos piores empregadores do mundo.


Com a crescente queda de faturamento dos hipermercados, modelo que perde venda ano após ano desde a estabilidade econômica, as grandes redes atacam com nova arma: as lojas de vizinhança, lançadas frenética e preferencialmente nos bairros.


A última moda da economia predadora varejista são os atacarejos, câncer comercial que foca tanto o consumidor final quanto os pequenos e microvarejistas, porteiras abertas para o continuísmo do impacto socioeconômico, aos olhares míopes de todas as esferas governamentais. Além do mais, simplesmente não existe política de proteção e fomento ao pequeno varejo, normalmente com estrutura familiar e participativa dos remendos sociais da região em que atua.


O que temos são entidades de classe descomprometidas e centrais de negócios com estímulo zero de qualquer esfera governamental — esta também omissa e até prejudicial aos pequenos e médios empreendimentos que tentam se estabelecer ou só sobreviver, como não deixam dúvida as dificuldades absurdas impostas pelas prefeituras para instalação de empresas e a ausência de incentivos que viabilizem e motivem investidores externos ou qualquer tipo de expansão, ampliação e fortalecimento dos pontos-de-venda varejistas.


Um novo paradigma para o varejo deve dar sinal verde para um desenvolvimento muito mais consistente e promissor, como merece o Grande ABC, berço de grandes movimentos e esperança de solidificação econômica. Criar identidade própria é certeza de afastarmos a sina que tem transformado a Região Metropolitana no lixo da Capital. O sonho da regionalidade é a primeira peça do quebra-cabeça chamado Grande ABC.


Como, por enquanto, a regionalidade política se apresenta cada vez mais distante, iniciemos então pela regionalidade acadêmica, empresarial, de classes ou pelos membros do Conselho Editorial da revista LivreMercado.


O fato é que não podemos perder mais tempo arcando, como se fôssemos todos mudos, com os altos custos de poderes legislativos e executivos irresponsáveis e sem compromisso com a sociedade que representam, muito menos com os prejuízos econômicos e sociais que essa inércia provoca e multiplica. As necessidades, problemas e semelhanças de nossas cidades são muito particulares. Portanto, cabem em quase todos os setores ações simultâneas tanto legislativas quanto executivas, criando movimentações regionais que contemplem primeiramente um intercâmbio de negócios e o rateio de custos na solução de problemas que ziguezagueiam em nossas divisas.


Quando sonhamos com um Grande ABC ideal, não podemos nos conformar com problemas mais salientes e primários como as questões da segurança e do transporte público. Quantos empregos seriam gerados, quantas empresas abertas, em quanto diminuiríamos o tão famoso custo ABC e quanto ganharíamos em qualidade de vida, notoriedade, redução do número de mortes, de acidentes, dos quilômetros de congestionamento e da poluição do ar com a regionalização das seguranças municipais e também do controle do tráfego?


Com certeza teríamos — e de forma muito mais barata e funcional — uma Guarda Regional com efetivo condizente com os quase três milhões de moradores, um trânsito planejado pelo mesmo dialeto, facilidades de transporte público regional, padronização de placas, sinalização, informações, fronteiras geográficas finalmente bem cuidadas.


O compromisso de nossos governantes
com os pequenos empreendimentos é
o mesmo de uma prostituta e seu cliente


O Grande ABC virou as costas para o varejo e para as pequenas e médias empresas. Os compromissos de nossos representantes com a região expressam a mesma relação que existe entre uma prostituta e seu cliente. Os governos federal e estadual tratam o Grande ABC com a mesma seriedade e importância com que se assiste a um filme dos Três Patetas. Somos vistos como falidos e incompetentes, e o pior é que, olhando a questão de perto, até parece ser um tratamento justo.


O fluxo de trânsito pela manhã rumo à Capital mostra o tamanho da nossa incompetência, e o contrafluxo é a própria declaração. Observem quantos desembarques ocorrem dos trens em nossas plataformas que chegam nas primeiras horas da jornada, sentido São Paulo — Grande ABC, e façam o mesmo no final do dia.


Quantos bilhões deixaríamos de jogar fora no Grande ABC por egoísmo, vaidade e busca obsessiva de sucesso de pretensos representantes com ego superinflado se nós, principais interessados nos resultados práticos, deixássemos de ser apenas observadores pacientes, estáticos, que lamentam a má, péssima, medíocre distribuição das receitas arrecadadas e passássemos a ser — ou a ter — fiscais diretos da objetividade na obtenção de benefícios reais para o comércio, a economia e o bem-estar dos cidadãos de nossos municípios?


Recordo famosa frase de Martin Luther King que se encaixa como luva na situação atual do Grande ABC: “O que mais preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem caráter, nem dos sem ética. O que mais preocupa é o silêncio dos bons”!


O Grande ABC morreu! Encarar a morte faz as pessoas verem as maravilhas da vida. Os erros do passado e a inércia do presente nos obrigam a acreditar na chamada vida após a morte, o que exige maneira diferente de agir. Fazer igual esperando resultado diferente é no mínimo insano. Como boas receitas temos de sobra, só nos falta atitude perante os fatos.


O cidadão sou eu, o governo sou eu, a responsabilidade, portanto, é minha. A escola depredada, roubada, superfaturada, não é do governo: é minha, é sua. Os governos são pagos, e bem pagos, para administrar dinheiro que é da sociedade. A ética na política é outra porque assim permitimos. A organização social brasileira é extremamente forte. Só não aparece ainda como deveria.


Fundamental, a moralidade pública, via fortalecimento das instituições, se faz possível apenas com uma população bem educada. No entanto, em uma cultura com tantos componentes e miscelâneas, o paradoxo faz com que o grito inaugural da impaciência transformadora, comendo literalmente pelas beiradas, resulte numa fantástica revolução social-educativa que ocorrerá da periferia para o centro.


Sim, é isso mesmo: a mudança virá daí, do coração da periferia dilacerada pela elite irresponsável, egoísta e pouco inteligente e por seus milagreiros locais de plantão transformados mais tarde em carrascos da própria comunidade. Tomemos como exemplo a Santo André de hoje: 800 mil habitantes, mais de 120 bairros, 600 guardas municipais, equipados com oito motos, meia dúzia de viaturas e dezenas de carências e solicitações.


Descentralizar os recursos arrecadados é o grande fantasma de nossos executivos públicos. A falta de capacidade e de vontade política torna impossível a adoção de soluções criativas e bem viáveis, como desenvolver áreas comerciais em bairros, tornar cada núcleo especializado em determinada vocação, seja industrial, comercial ou de serviços. Descentralizando, a vida da cidade fica mais justa, problemas maiores são amenizados, o trânsito melhora, a qualidade de vida se aprimora e a comunidade se torna autoconfiante.


O que, claro, é bom para todos e está em nossas mãos conseguir, não magicamente, com um abracadabra cívico, mas firme e objetivamente cumprindo nossa cidadania, de modo a que os sanguessugas acabem por perder seus postos e a esperança se torne ato, fato e retrato de um Grande ABC rumando por vocação própria para um progresso e um bem-estar social que nada tem de impossível.


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